Princípio da boa-fé objetiva na relação pré-contratual
O princípio da boa-fé objetiva nos contratos é uma exigência de conduta leal pelos contratantes e de respeito aos deveres anexos à relação contratual.
- Colunistas
- Rafael Brasil
- 25 de junho de 2018
- Atualizado em: 20 de julho de 2021
- Tempo de Leitura: 7 minuto(s)
A importância da boa fé objetiva nos contratos
Desde os primórdios, a humanidade busca desenvolver estruturas para que as relações sejam mais éticas. Por isso, é comum encontrar em diferentes sociedades, regras mínimas e básicas de convívio com base no princípio da boa-fé.
Dar a cada um o que é seu, não lesar ninguém e viver honestamente são conceitos que demonstram que a ética está presente em todas as esferas: seja na política, na economia, na Administração Pública e, naturalmente, no Direito.
O Direito, em especial, está intimamente ligado aos conceitos éticos. Afinal, é a partir da ética que se extrai toda a estrutura do ordenamento jurídico. Em outras palavras, isso significa que as leis, de modo geral, são baseadas em princípios éticos. Nas palavras de Giselda Hironaka:
Não se fala em direito se não se falar em ética. Assim, não se fala em sociedade justa, se esta mesma sociedade não se estruturar sobre firme base valorativa ética. [1]
O princípio da boa fé está previsto expressamente no Código Civil, mas também está presente em estrutura jurídica atual. O ordenamento jurídico se pauta, sobretudo, nos conceitos éticos que delimitam a essência das nossas leis. E isso não é algo novo. Desde o direito romano, a ética já era determinante para a criação das leis, segundo Clóvis do Couto e Silva (2006).
A influência da boa-fé na formação dos institutos jurídicos é algo que não se pode desconhecer ou desprezar. Basta contemplar o direito romano para avaliar sua importância. […] valorizava grandemente o comportamento ético das partes […] para que pudesse considerar, na sentença, a retidão e a lisura do procedimento dos litigantes, quando da celebração do negócio jurídico. [2]
1. Princípio da boa-fé no Direito Brasileiro
Embora exista desde o Direito Romano, o princípio da boa-fé objetiva só passou a fazer parte de forma expressa no direito brasileiro após no atual Código Civil. Antes, o que se previa era a boa-fé subjetiva, que, como você verá, representa uma importante diferença.
Boa-fé subjetiva
Antes de 2002, o Código Civil de 1916 previa apenas o princípio da boa-fé subjetiva.
A boa-fé subjetivas pode ser traduzido como a ingenuidade ou inocência da parte no momento da celebração de um contrato. É o caso, por exemplo, do comprador de boa-fé. Portanto, a diferenciação entre a boa-fé e a má-fé dependia de uma análise da intenção do sujeito.
Veja a redação do art. 514 do Código Civil de 1916:
Art. 514. O possuidor de boa fé não responde pela perda ou deterioração da coisa, a que não der causa.
Boa-fé objetiva
O Código Civil de 2002, no entanto, já traz expressamente o conceito de boa-fé objetiva.
Tal conceito está presente, desse modo, tanto no art. 113 quanto no art. 422 do Código Civil. Portanto, veja as redações:
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Como você verá adiante, a boa-fé se relaciona a deveres anexos à relação contratual. A probidade, por sua vez, pressupõe uma ação honesta, uma conduta íntegra dentro dos padrões sociais.
É importante observar também que, apesar de o princípio ser previsto apenas com o Código Civil de 2002, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) já trazia o princípio da boa fé objetiva como elemento essencial às relações jurídicas em seu art. 4º, inciso III.
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
[…]
III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;
Treu un Glauben: a boa fé objetiva a partir do Direito Alemão
O princípio da boa-fé objetiva no Direito Brasileiro decorre, historicamente, do direito germânico Treu und Glauben.
No Bürgerliches Gesetzbuch, que é uma espécie de Código Civil Alemão, vemos, de maneira clara, a aplicação desse princípio. Segue, então, a menção dada a ele:
- 157: Interpretação dos contratos. Os contratos devem ser interpretados com boa-fé em atenção aos usos comuns. [3]
- 242: Desempenho de boa-fé. O devedor é obrigado a efetuar a prestação de boa-fé, respeitando os usos comuns. [4]

2. O que é o princípio da boa-fé objetiva nos contratos
Embora o princípio da boa-fé objetiva esteja presente no ordenamento jurídico atual, ele também precisa ser compreendido na prática pelos advogados e advogadas.
A boa-fé objetiva é uma exigência de uma conduta leal por parte dos contratantes. Na prática, isso significa que eles devem observar os deveres anexos à conduta de uma relação contratual. Tais deveres delimitam, por exemplo, qual deve ser o comportamento das partes.
3. Deveres anexos à relação contratual
Os deveres anexos são:
- cuidado em relação à outra parte negocial;
- respeito;
- informar a outra parte sobre o conteúdo do negócio;
- agir conforme a confiança depositada;
- lealdade e probidade;
- colaboração;
- agir com honestidade;
- agir conforme a razoabilidade, a equidade e a boa razão.
Portanto, o princípio da boa-fé objetiva é, na prática, um dever de conduta que envolve, basicamente, o agir de maneira íntegra e ética em uma relação negocial.
Conforme Flávio Tartuce:
Em complemento, para o âmbito do processo civil, a violação dos deveres anexos processuais passa a gerar, além da imposição das penalidades por litigância de má-fé, uma responsabilização objetiva ou sem culpa pelos danos processuais ou materiais causados [5].
Por fim, agir contrariamente a esses deveres implica em ofensa ao princípio da boa-fé e, consequentemente, agir de má fé.
4. Boa fé na fase pré-contratual: Enunciados 25 e 170 do CJF
Muito embora o art. 422 do Código Civil mencione a obrigatoriedade de se guardar o princípio da boa-fé na conclusão e execução do contrato, é preciso ter em mente que a boa-fé precisa estar em todas as etapas das relações contratuais. Ou seja, também deve ser parte da fase pré-contratual.
Tal exigência é necessária, porque nem sempre há equilíbrio entre as partes que pactuam o acordo. Isso demonstra, por exemplo, que o conceito francês qui dit contractuel dit juste (quem diz o contrato diz justo) não prevalece em todos os casos.
Nesse sentido, já existem vários Enunciados do Conselho da Justiça Federal (CJF) que estabelecem que o princípio da boa-fé deve ser observado também antes do início do contrato. Merecem destaque especial os Enunciados 25 e 170:
Enunciado 25 (I Jornada CJF): O art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação pelo julgador do princípio da boa-fé nas fases pré-contratual e pós-contratual.
Enunciado 170 (III Jornada CJF): A boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato.
Ambas decisões, como se conclui da leitura, reconhecem a aplicação do princípio da boa-fé objetiva em todas as fases contratuais.
5. O caso dos tomates: aplicação prática do princípio da boa-fé nos contratos
O princípio da boa-fé tem, assim, diversas aplicações nos contratos e nas relações cotidianas. Contudo, existe um leading case bastante conhecido do público jurídico que vale a pena trazer para elucidar.
Ao longo de vários anos, a empresa Cica distribuiu sementes de tomates aos agricultores de determinada cidade do Rio Grande do Sul. Não havia, no entanto, qualquer contrato escrito que regulasse a prática, como seria o caso de um contrato de compra e venda de safra futura, por exemplo.
Isso, claro, gerava a expectativa aos agricultores gaúchos de que a safra seria comprada ao final do ciclo.
Em determinado ano, entretanto, a empresa não adquiriu a produção que havia sido plantada com as sementes distribuídas. Isso levou à perda de toda safra por alguns agricultores.
Ao analisar o caso, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul responsabilizou a empresa pela conduta de quebra de confiança, ou seja, por agir em desconformidade ao princípio da boa-fé, mesmo que na fase pré-contratual.
É o que deixa claro o fragmento da decisão:
CONTRATO. TEORIA DA APARÊNCIA. INADIMPLEMENTO. O trato, contido na intenção, configura contrato, porquanto os produtores, nos anos anteriores, plantaram para a CICA e, não tinham por que plantar, sem garantia da compra. [6]
Assim, com base nesse case, percebe-se que a empresa desrespeitou alguns deveres anexos de conduta, que já mencionados anteriormente. Veja alguns exemplos de deveres contratuais:
- cuidado em relação à outra parte negocial;
- informar a outra parte sobre o conteúdo do negócio;
- agir conforme a confiança depositada.
Configura-se, portanto, nesse caso, o chamado tu quoque, ou comportamento surpresa. Tal prática é vedada pelo Código Civil.
6. Litigância de má-fé no Novo CPC
A boa-fé também está presente nos princípios do processo civil pelo Novo CPC.
Portanto, o agir de boa-fé é um dever das partes e de todos os envolvidos, da relação contratual ao processo, essencial ao exercício de um direito.
O art. 5º do Novo CPC, por exemplo, prevê a norma de conduta ao trazer que aquele que, de qualquer forma, participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.
Entre os deveres das partes e terceiros, estão a vedação a:
- faltar com a verdade ao expor os fatos em juízo;
- apresentar pretensão ou defesa que sabem não ter fundamento;
- produzir provas ou praticar atos desnecessários;
- criar obstáculos para o cumprimento das decisões judiciais.
Nesse contexto, portanto, a litigância de má-fé é justamente agir, na abertura ou no decorrer do processo, em contrariedade ao princípio da boa-fé.
7. Boa-fé no negócio jurídico e nos ramos do Direito: da jurisprudência às consequências
O princípio da boa-fé objetiva está expressamente presente no ordenamento jurídico desde a edição do Código Civil de 2002 como uma norma de conduta.
Atualmente, na jurisprudência, é muito comum encontrar decisões de ações baseadas no princípio da boa-fé. Afinal, busca-se a lei brasileira prima pelo equilíbrio, segurança e satisfação das partes.
Nota-se em inúmeros casos que a desobediência ao princípio da boa-fé implica em graves consequências. Por se tratar de um dever, a lesão a esse princípio se caracteriza, então, como ato ilícito, merecedor de reparação.
Assim, a boa fé objetiva deve ser observada e praticada em qualquer relação jurídica, ainda que não exista, de fato, um contrato firmado.
Caso se interesse por mais conteúdos sobre o tema, recomendo os artigos abaixo:
Referências
- HIRONAKA, Giselda. Principiologia contratual e a valoração ética no Código Civil Brasileiro. Acessado em 03/05/2018
- SILVA, Clóvis do Couto e, A obrigação como processo – reimpressão – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
- §157: “Auslegung von Verträgen. Verträge sind so auszulegen, wie Treu und Glauben mit Rücksicht auf die Verkehrssitte es erfordern” (Original)
- § 242: “Leistung nach Treu und Glauben. Der Schuldner ist verpflichtet, die Leistung so zu bewirken, wie Treu und Glauben mit Rücksicht auf die Verkehrssitte es erfordern” (Original)
- TARTUCE, Flávio. O Novo CPC e o Direito Civil: impactos, diálogos e interações. São Paulo: Editora Método, 2015.
- TJRS, Embargos Infringentes nº 591083357. Rel. Juiz Adalberto Libório Barros, 1991